quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A antropologia multifacetada de Clifford Geertz: Algumas considerações

Por Gerôncio Ferreira Macedo Júnior[1]

I – Introdução

Este texto tem caráter meramente descritivo, à medida que visa situar algumas noções elementares da antropologia de Clifford Geertz, traçando um paralelo entre o capítulo I da sua obra – A Interpretação das Culturas – e alguns apontamentos de classe.

Como veremos, a discussão sobre símbolos que se travou nas décadas de 60 e 70 teve em Clifford Geertz seu precursor, inaugurando a fase da antropologia simbólica, interpretativa ou hermenêutica.

II – A antropologia como rede de significados

Clifford Geertz (1926-2006) foi um antropólogo estadunidense que capitaneou o pensamento de que a antropologia deve ser considerada como uma ciência interpretativa. Para chegar a esta conclusão, Geertz parte do pressuposto de que a cultura, como “o todo mais complexo”(assim definida por Tylor), constitui-se em um ecletismo autofrustrado, de modo que a cultura tornou-se, metaforicamente, em um cacho de bananas, às quais o antropólogo pode, a qualquer tempo, escolher. Contra este pressuposto, Geertz propõe uma leitura diversa, um conceito semiótico, o qual delineará a antropologia como ciência hermenêutica, à busca de significados. Auto-explicativas são as palavras do autor: “É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície”. (GEERTZ, 1978, pág.15)

A ciência, sob este prisma, deve ser analisada a partir de outro enfoque. Conforme salienta Geertz, para compreender uma ciência não se deve aceitar posicionamentos doutrinários, mas, pelo contrário, é preciso analisar como os praticantes desta ciência atuam ou agem. Na seara antropológica o método que nos identifica é etnográfico. Logo, o ‘fazer etnografia’ constitui-se em pressuposto para a compreensão epistemológica da antropologia. Mas não é a discussão acerca de qual o método mais propício a ser escolhido, muito menos a instrumentalização desse método, plasmada em transcrição de textos, ou investigação genealógica etc. Ao contrário, o que definirá a análise antropológica como forma de conhecimento é o tipo de esforço intelectual que se afigura em cada caso concreto. Nas palavras de Gilbert Ryle (apud GEERTZ, 1978, pág.15), o fazer etnografia produz uma “descrição densa”. Entre a “descrição densa” e a “descrição superficial” estaria contido o objeto da etnografia, na visão Geertziana. A título de exemplo, entenda-se “descrição superficial” como aquilo que alguém está fazendo (uma garota que olha o seu cabelo no espelho), e a “descrição densa” como aquilo que ela está fazendo (olhando se ao se olhar no espelho existe alguém a olhando). Neste intermédio há uma “hierarquia estratificada de estruturas significantes”, um conjunto de significantes, ou, melhor, “um mundo que tem vida”. Percebe-se que a partir deste aspecto, Geertz considera os significados e suas interpretações como núcleo de sua antropologia, isto é, como se fossem textos. Tratados como se fossem textos, as culturas devem ser lidas de diversas formas.

O antropólogo seria como um “crítico literário”, e menos como um decifrador de códigos (uma alusão à análise estruturalista proposta por Lévi-Strauss). Pois o primeiro constrói o significado, e o segundo o decifra, como se houvesse apenas um código. O antropólogo, por sua vez, igualmente ao crítico, captura do comportamento dos nativos informações diversas com múltiplas referências. Por isso a etnografia é uma atividade complexa: É muito mais que uma descrição superficial. É uma descrição densa, uma vez que os comportamentos se embaraçam em “teias de significado”. Primeiro o antropólogo irá capturar a teia, logo após, desembaraçá-la.

II – O símbolo como domínio público

A cultura e, por seu turno, os símbolos são públicos, já que o comportamento humano é uma ação simbólica. Geertz rechaça o argumento de que se deve buscar o status ontológico do comportamento, advogando que a questão central é buscar a importância, a saber: o que está sendo comunicado, “transmitido” com a sua realização. Por sua via, o autor critica a doutrina de Ward Goodenough (e sua antropologia cognitiva) segundo a qual a “cultura está [localizada] na mente e no coração dos homens”. Geertz assevera que a elaboração de tal corrente possui defeito grave ao unir um subjetivismo extremo a um formalismo extremo, produzindo, ao final, a dúvida se as análises particulares projetariam o modus vivendi dos nativos, ou não passariam de quadros simulados racionalmente, afastando, em substância, o pensar dos nativos.

Sob este panorama, Geertz afirma que “a cultura é pública porque o significado o é”. (GEERTZ, 1978, pág.23) Tal aferição deixa clara que sua intenção (fortemente influenciada pela filosofia da linguagem, de Husserl até Wittgenstein) possui, em nossa análise, duas acepções. A primeira é afastar, como nos diz Geertz, a “falácia cognitiva”, que insiste em dizer que a cultura consiste “em fenômenos mentais que podem ser analisados através de métodos formais similares aos da matemática e da lógica” (é uma crítica a Stephen Tyler, aos behavioristas e aos idealistas) (GEERTZ, 1978, pág.22) . Pois, o ato de uma piscadela – com toda sua carga axiológica – só pode ser entendido se aquele que pisca compreende o conteúdo desse piscar. Entender o contrário seria embaralhar o conteúdo de uma simples contração de pálpebras com o ato de piscar como meio de comunicação numa determinada situação. Ou, como nos diz Geertz, entender as descrições superficiais como densas. A lição de Wittgenstein, sob este prisma, é singular. Di-lo, brilhantemente, que normalmente “as pessoas são transparentes para nós”, isto é, absorvemos sem dificuldades o conteúdo das relações inter-pessoais; contudo, saliente-se que em um país distinto do nosso esta realidade cai por terra, já que, mesmo dominando por completo o idioma, a compreensão de um povo se nos afigura como algo distante; não porque não entendemos o que eles falam, senão porque não conseguimos nos colocar inseridos naquele contexto, ou seja, nos contextualizar.

A questão colocada por nós de se contextualizar, Geertz chama de “situar”. Aqui está o objetivo da etnografia como atividade do sujeito. Assegura o autor que se situar entre os nativos não se mostra como copiá-los ou nos transmutarmos neles. Contrariamente, significa conversar com eles. Deste modo, o objetivo da antropologia – de modo que abarque o conceito de cultura como elemento semiótico – é a amplificação do universo discursivo. A cultura vista desta maneira, é um símbolo, e como tal configura-se a partir de um contexto, dentro do qual podem ser descritos com densidade.

O antropólogo busca, então, compreender este sistema de símbolos, relacionados uns com os outros, “expor sua normalidade, sem reduzir sua particularidade”. É normal, para o grupo; é, também, particular no momento em que é dessemelhante a cultura de outro grupo. Conseqüentemente, afirma Geertz, mais compreensivo tornar-se a visualização da cultura do nativo, à medida que se tornar mais lógico para o antropólogo o seu contexto. Com esmero o autor sintetiza nesta passagem: “Isso os torna acessíveis: colocá-los no quadro de suas próprias banalidades dissolve sua opacidade”. (GEERTZ, 1978, pág.24)

Tais táticas, também chamadas de “ver as coisas do ponto de vista do ator”, “abordagem verstehen” (termo alemão plasmado por Max Weber para discutir a compreensão dos significados) , “analise êmica”, devem ser abordadas, diz Geertz, com cuidado, pois, nada melhor do que compreender a interpretação antropológica – nos termos explanados pelo próprio autor –, creditando uma compreensão exata do que a antropologia se proponha a dizer, das suas formulações - através da interpretação dos atos dos sujeitos estudados- dos sistemas simbólicos de outros povos.

Dizer isso é afirmar que nossas interpretações desses atos são construções imaginativas, descrições que passam longe da própria interpretação que fazem de sua cultura os próprios nativos. São assim análises científicas, oriundas da antropologia, e da experiência daqueles que as descrevem. Diz Geertz: “começamos com as nossas próprias interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que achamos que eles pretendem, e depois passamos a sistematizá-las”. (GEERTZ, 1978, pág.25) Em suma, o antropólogo, distintamente do nativo que faz uma interpretação de primeira mão, faz uma interpretação de segunda ou terceira mão. São “ficções”, “construídas” e “modeladas” igualmente a uma fantasia narrada em um livro, sendo, entretanto, que na descrição do antropólogo a situação ocorreu e foi anotada, enquanto a descrição de um livro de fantasia a situação é hipotética, não ocorreu. Muda-se o enfoque, mas ambas são fabricadas.

Portanto, deve o etnógrafo separar em seus trabalhos a piscadela da simples contração da pálpebra, ou a piscadela verdadeira da imitada, para assim concluir uma descrição densa, concentrada, produto da interpretação, distante da mera descrição superficial.

As formas culturais encontram articulação, nos diz Geertz, nos passos largos ou curtos do comportamento, isto é, formam uma teia ou rede de significados. Esta teia de significados deve ser inscrita pelo etnógrafo, deve ser anotada. As coisas passam, os sujeitos perecem, mas o que ocorreu entre eles permanece plasmado no texto, “conservado para estudo”. Fica bastante claro o empréstimo da noção de inscrição da ação de Paul Ricoeur por Geertz. Para aquele o que fica inscrito é “o significado do acontecimento, não o acontecimento como acontecimento”, o que impõe igualmente em ratificar o entendimento segundo o qual o dito é apreendido, tornando-se enunciado. E o que escrevemos é a substancia deste enunciado.

Mesmo entendendo que o etnógrafo é aquele que escreve, é necessário pontuar que a mera inscrição não pode ser entendida como uma realidade absoluta, um “discurso social bruto”, como diz Geertz, senão como aquilo que realmente está na margem, aquilo que é possível, através dos meios existentes, isto é, o compreender. Entretanto, longe está a antropologia de se tornar uma Weltanschauungen (concepção de mundo ou cosmo-visão – termo cunhado por Wilhelm Dilthey(1833-1911) para definir o processo de conhecimento que orienta o indivíduo a ascender a consciência de si mesmo e do mundo); propor tal conclusão é chegar ao final do labirinto da ciência, portanto uma realidade que não pode ser encontrada.

III – A dimensão teórica da antropologia interpretativa

Um argumento elucidativo, e ao que parece, maior preocupação de Geertz, é aquele que se refere a incapacidade de construção conceitual no seio de uma epistemologia interpretativa. Tal preocupação reside na (in) possibilidade de apreender uma interpretação, uma vez que determinada construção cai por terra face uma análise sistemática. Já que a interpretação é construída a partir da carga sensitiva daquele que a constrói, quaisquer tentativas de enxergá-la de forma distinta de como foi proposta é vista, nas palavras de Geertz, como um “travesti”.

Isso leva a uma conseqüência nefasta: que o antropólogo está limitado a “insinuar” teorias, jamais expressá-las. Geertz argumenta, também, que esta limitação se constitui em barreira à interpretação cultural ou ao fazer vôos mais longos, como em outras ciências. A antropologia interpretativa se restringe, assim, a pequenos saltos, ou de outro lado, cair-se-ia em “sonhos lógicos”, ou “simetrias formais” (GEERTZ, 1978, pág.34-35) (mais uma referência crítica ao estruturalismo lévi-straussiano, concorrente teórico à abordagem proposta pelo autor). Por via obliqua, a análise semiótica possibilita a apreensão do mundo de conceitos no qual vivem determinados grupos, favorecendo um contato mais denso.

Geertz argumenta que seria possível amplificar os conceitos, mas dificilmente isso levaria a uma construção de uma Teoria Geral de Interpretação Cultural, pois o objetivo fundamental não seria, como já foi dito algures, construir códigos regulares, senão que possibilitar descrições mais densas.

Respectivamente, os significantes seriam atos simbólicos ou conjuntos de atos simbólicos e o objetivo do estudo da cultura centra-se na análise do discurso social, utilizando a teoria para “investigar a importância não-aparente das coisas”. (GEERTZ, 1978, pág.36)

Sob esta perspectiva, critica-se que a interpretação cultural seria post facto, isto é, após o fato, e Geertz assume, em parte, tal crítica. Mas pontua que estas interpretações funcionam como estabilizador de situações já sob controle, não foram construídas para supervenientes experimentos ou para deduzir sistemas determinados. O objetivo destas interpretações, por outro lado, não é ficar estanque em relação à situações do passado. Deve, isso sim, projetar-se para o futuro na medida em que favorece o surgimento de novas interpretações para outros fenômenos. Funcionariam como um pressuposto epistemológico para que aquele que inicia a pesquisa não se sinta desamparado, “intelectualmente vazio”. Podendo ser, inclusive, re-elaboradas e de uma forma ou de outra continuam a ser utilizadas.

Deste ponto, saliente-se que Geertz trabalhará com conceitos gerais e sistemas de conceitos: “integração”, “ethos”, “revolução”, “identidade”, “visão”, “cultura”, que fazem parte de sua etnografia descritivamente densa. A partir daí pode-se dizer que a cultura colocada, sob análise, é retirada de pequenos fatos e projetada com vistas a produzir uma rede complexa de significados. Eis, o que a sua produção etnográfica faz, com uma habilidade extraordinária.


Referências bibliográficas:

Artigo acessado via web: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/W/Weltanschauungen.htm
GEERTZ, Clifford. 'Uma Descrição Densa: Por uma teoria Interpretativa da Cultura'.
In A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 1978. págs.13-41.

[1] Acadêmico do curso de Ciências Sociais da UFBA. A presente resenha foi apresentada à disciplina Antropologia I no segundo semestre de 2009. Meus sinceros agradecimentos à Profa. Dr. McCallum pelas sugestões de alteração do texto e pela paciência na hora da correção.